A PESQUISA EM FILOSOFIA DO COMPORTAMENTO ECONÔMICO
A história da humanidade e da economia são escritas com a mesma pena; falar da primeira implica descrever a outra. A trajetória do ser humano é contada através dos prazeres, dores, desejos, paixões, jogos de poder e dominação, lutas, vícios e virtudes em sua dupla relação consigo mesmo e com o mundo. A economia, como atividade de trocas, de tão antiga sua origem se perdeu, pois começou quando o primeiro ser humano desejou possuir algo possuído por outro. Trocar implica necessariamente a relação mínima entre duas pessoas que trazem consigo o espírito carregado dos sentimentos, desejos e emoções que acompanham a ação, quer seja ela uma troca justa ou impositiva. Por isso mesmo, a economia tem como razão de ser o indivíduo em interação econômico-social nas suas atividades como membro de um grupo. Onde existe desejo e necessidade existe a economia, daí a sua classificação como pertencente ao complexo mundo das ciências humanas.
Contar o progresso da humanidade significa contar também o seu desenvolvimento econômico, que atingiu um alto grau de sofisticação no contexto atual. Apesar disso, não raro, os resultados esperados não são alcançados ou o são somente em parte após a implantação de alguma medida econômica. Os mais de 25 anos em que trabalhei como economista em empresas privadas e no governo brasileiro não foram capazes de me fazer compreender a causa do problema. Percebi, então, que a economia não seria capaz de responder à pergunta sempre presente: por que os modelos econômicos ainda falham apesar da crescente sofisticação de seus métodos?
A Economia é uma ciência de dupla face. Amartya Sen denominou de “engenheirística” a parte da economia voltada à matemática e à econometria como base da modelagem desta ciência, justamente aquela área que deveria ser considerada a sua parte exata, capaz de fazer previsões, mas que, no entanto, não consegue cumprir perfeitamente essa última função. Portanto, ficava claro que não era na sua parte eminentemente científica que eu encontraria as respostas que buscava. Restava mergulhar no lado mais instável, e por isso mesmo, aquele com mais possibilidades de apontar as causas: na economia ainda como ciência, porém voltada para aquele que é a sua finalidade última, o indivíduo como membro de um grupo unido pelo mesmo propósito. Daí nasceu a pesquisa em filosofia que resultou na tese que ora defendo, tendo como hipótese o fato de que a economia por ser uma ciência que tem como base as interações dentro de um contexto econômico-social faz com que o seu lado humano interfira na sua parte que deveria ser exata.
Foi definido como ponto de partida o momento considerado como aquele do nascimento da economia como ciência, embora muito antes tenha sido discutida de forma não sistemática em relação a temas específicos inerentes a ela. Assim nasceu a escolha dos autores propostos: Adam Smith, considerado o pai da economia moderna, que sistematizou a economia política em A Riqueza das Nações; e John Stuart Mill que a configurou como ciência ao definir seus objetivos, metodologia, escopo e limites em sua Sobre a definição Economia Política e o Método Próprio para sua Investigação.
O que chamou a atenção no estudo dos dois autores é que apesar da lógica de suas argumentações e diferenças nas abordagens, havia um ponto em comum onde as certezas dos pressupostos se tornavam mais instáveis, ou seja, naqueles onde a operacionalização da economia dependia da ação dos seres humanos. Ou em termos atuais, onde o sucesso da aplicação dos modelos dependia que os diversos atores se comportassem dentro de um padrão pré-estabelecido e esperado. Adam Smith, como professor de moral, já havia demonstrado a força dos sentimentos no processo de interação social em sua Teoria dos Sentimentos Morais e Stuart Mill declarara que a lógica dos modelos poderia ser disturbada por causa da natureza humana. Tendo como base a hipótese levantada, o objetivo geral foi o de determinar como o ser humano em suas atividades econômicas poderia causar instabilidade nos modelos, as chamadas “causas perturbadoras” de John Stuart Mill.
Como primeiro objetivo específico foi estabelecido buscar entender como Mill caracterizou a economia como ciência humana apesar de se apoiar em modelos matemáticos. Contudo, a definição arbitrária e abstrata do homo oeconomicus, ou seja, como um ser humano totalmente racional que lida e opera diariamente a economia com ações voltadas exclusivamente para maximizar seus lucros poderia causar instabilidade aos modelos. A denominação “homo oeconomicus” foi dada por Vilfredo Pareto para designar a faceta do ser humano voltada para a busca da riqueza. Portanto, é um conceito que engloba o “homo”, ou seja, indivíduo em toda a sua complexidade psicológica, supostamente agindo racionalmente em busca da riqueza, ou seja, como “oeconomicus”. Como se verificou no decorrer da pesquisa, o que causa distúrbio nesse conceito é que a balança pesa mais para o lado do “homo”.
Como causa perturbadora nos modelos econômicos, Stuart Mill argumentou que a natureza humana pode agir como força contraditória à busca da riqueza, quando se expressa na forma de desejos por bens dispendiosos e aversão ao trabalho. Assim, toda a pesquisa foi voltada para o binômio ciência – homem econômico, objetivando entender como o comportamento do segundo interferia na modelagem da primeira. Como ciência, apesar de toda a matematização (ou engenharia), a economia se mostrou inexata por definir em seus modelos uma tendência e não um caminho preciso. Por outro lado, não é uma ciência que trata o ser humano como indivíduo isolado, mas como indivíduo vivendo em interação social.
Dessa forma, foi estabelecido como segundo objetivo específico entender como indivíduo entra em interação com outros e como isso se reflete no seu comportamento econômico-social. Daí a importância de Adam Smith, como filósofo e sistematizador da economia, para dar luz às ações ditas racionais do homo oeconomicus, tendo como base o conceito de “simpatia” demonstrado nas análises elencadas nas suas obras. Até onde foi possível saber, ainda não haviam sido estudadas as “causas perturbadoras” de Stuart Mill sob a luz do pensamento de Adam Smith como expresso na sua Teoria de Sentimentos Morais.
O comportamento do homo oeconomicus havia sido estudado dentro do âmbito da economia e da psicologia, mas não dentro de uma ótica filosófica. Podemos apontar esse aspecto como o segundo ponto de originalidade da pesquisa. Assim sendo, houve a necessidade da pesquisa histórica sobre a origem e o caminho de construção dos conceitos basilares que deram origem ao pensamento dos dois filósofos já mencionados, estritamente dentro dos limites estabelecidos pelo problema e hipótese. Estou me referindo aos conceitos de simpatia, ações autointeressadas, paixões, desejos, vaidade, orgulho, natureza humana, causas e efeitos, teorização da economia, sociedade, riqueza e lei psicológica. Os resultados serviram de base para o argumento de que o homem econômico definido por Mill não possuía aspectos somente lógicos, mas admitia nuances de comportamentos movidos por sentimentos também, ou quase racionais como diria o prêmio Nobel de economia, Richard Thaler.
Para Stuart Mill e Adam Smith a sociedade é entendida como a somatória de cada membro tomado separadamente e não como parte de um todo coeso, o que significa dizer que cada um poderia ser a ignição que iniciaria o processo da ação conjunta que levaria a uma mudança de comportamento social. No âmbito da economia, movidos pelo desejo de riqueza os diversos homo oeconomicus agindo dentro de seu interesse pessoal levariam à riqueza de seu grupo social, ou da nação como afirmava Adam Smith. Stuart Mill afirmava que ações do homem econômico está sob o impulso da lei psicológica de que “um maior ganho era melhor do que um menor”, mas não especificou como chegou a essa lei. Não tendo encontrado literatura econômica e psicológica que pudesse explicar como o filósofo estabeleceu os fundamentos da referida lei, a pesquisa buscou determinar as suas origens e razões. Foi no livro Análise da Mente Humana de autoria de James Mill, editado e com notas do filho John Stuart Mill, onde a explicação foi encontrada, ou seja, no sentimento de orgulho ao se perceber que a riqueza possuída é maior do que a do outro, mas mais ainda, a satisfação ao se perceber que a do outro é menor. Tal sentimento orgulhoso de comparação leva o indivíduo a buscar sempre um ganho maior. O desenvolvimento do argumento pode ser apontado como o terceiro ponto de contribuição da tese.
Para Adam Smith a essência do homem econômico está na atividade de trocas em todos os seus significados, o que levou a pesquisa a investigar se o filósofo também havia apontado alguma lei psicológica que norteava a ação daquele. Partindo da afirmação de Smith de que a humanidade está mais disposta a simpatizar com o sentimento de alegria do que com o sentimento de tristeza e que por isso buscamos o prazer e evitamos a dor, a pesquisa adentrou no universo das relações interpessoais retratadas na obra já referida anteriormente para buscar determinar não somente a lei psicológica apontada por Smith, mas também elencar as emoções básicas envolvidas. O filósofo em suas obras, de forma não sistemática, deixou pistas de como caracterizava o homem econômico, ou seja, aquele que exercia ações mercenárias impelido pela lei de “perseguir a riqueza e evitar a pobreza” tendo como base a emoção da vaidade. Esses pontos não haviam ainda sido discutidos na academia.
A partir da junção das leis psicológicas de Mill e Smith, do estudo das emoções envolvidas (principalmente orgulho e vaidade), da importância da simpatia como mecanismo de interação social a pesquisa tomou um rumo definido, sendo as conclusões atualizadas no contexto contemporâneo de mindreading, vicarious theories, emoções, inexatidão das teorias econômicas, commonsensibles, I e We intentions e consumo conspícuo. Os estudos realizados demonstraram que por ação da simpatia aliada à imaginação o indivíduo se projeta no lugar do outro, porém utilizando-se do seu próprio padrão psicológico para interpretação da situação observada. Da mesma forma, também por força do mecanismo da simpatia um padrão anterior de comportamento do grupo pode ser alterado. A mudança de um comportamento de consumo não prevista nos modelos utilizados, por exemplo, leva a ocorrência de distúrbios nos resultados esperados.
Como já mencionado, até então o comportamento do indivíduo havia sido estudado pela psicologia e pela economia, respectivamente nas áreas da psicologia econômica e da economia comportamental, cujos resultados obtidos renderam dois prêmios Nobel de economia. O objetivo de ambos estudos era o de entender como as pessoas tomam decisões e fazem as suas escolhas tendo como foco orientar as ações do mercado e do governo na gestão e implementação de políticas públicas. Mas quanto ao homo oeconomicus, aqui entendido como aquele de carne e osso que paga suas contas, faz empréstimos, poupa, presta serviços, pesquisador, cientista, financista, trabalhador, investidor, banqueiro, enfim qualquer membro de um grupo que lida no dia-a-dia com assuntos econômico-financeiros, os estudos pouco esclarecimentos ofereciam para que ele pudesse conhecer o que o impele a tomar decisões, muitas vezes de forma diferente daquela ditada pela razão. Daí surgiu a proposta de se acrescentar a filosofia sobre os estudos e conclusões da psicologia e da economia no tocante ao comportamento do indivíduo como membro de um grupo, algo que ainda não havia sido feito.
Portanto, o objetivo maior da tese foi estabelecer os fundamentos para a criação da Filosofia do Comportamento Econômico, uma união das pesquisas em psicologia, economia e filosofia tendo como foco o indivíduo e não o mercado ou o governo. As conclusões levantadas na tese significam simplesmente o ponto de partida como base para o desdobramento dos muitos caminhos possíveis.
Pareto nos lembrou que o indivíduo é muitos em um só, homo economicus, homo eticus, homo religiosus, etc., o que vale dizer que todos eles agem como causas compostas para a manifestação da pessoa como ser que vive em estado social, estado esse que hoje ultrapassa os limites da língua, da cultura e da religião. Hoje a ação de um tem um âmbito muito maior a ponto de alterar a ação de muitos, o que vale dizer que o conceito do agir racional é incompleto se não estiver aliado ao conceito de agir consciente.
A sociedade de mercado é antes de tudo, como sabia Adam Smith, um dispositivo moral. Funciona distribuindo responsabilidades e parcerias, processo esse que demanda maturidade e liberdade de ação. Como ser livre no agir dentro da sociedade de mercado sob a ação das leis psicológicas da natureza humana evidenciadas por Adam Smith e Stuart Mill? Em outras palavras, como perseguir a riqueza preferindo sempre um ganho maior, sem ceder ao orgulho e à vaidade e sem se deixar enredar pelas malhas da corrupção e da falta de ética no agir? Pensar no comportamento do homo oeconomicus para que, apesar das emoções, seja capaz de fazer as escolhas que levarão à Riqueza das Nações dentro de uma sociedade economicamente mais justa em um contexto global. É nisso que pensa a Filosofia do Comportamento Econômico, na economia baseada no ethos do indivíduo como sujeito que está no mundo, apesar do mundo.